19 de janeiro de 2013

A Rede Globo e os evangélicos

globo Evangelicos

Artigo publicado na Folha de S.Paulo sobre um encontro entre líderes evangélicos e o responsável por projetos especiais da Globo, Amauri Soares, durante o qual esses líderes, incluindo o mais falante deles, Silas Malafaia, solicitariam a criação de uma heroína evangélica em novela da emissora como reparo à imagem negativa de personagens evangélicos, permite-nos analisar o fato sob vários aspectos para não perpetuar o erro que posturas como a desses líderes acabam reforçando: que os evangélicos precisam de bajulação para recuperar sua autoestima, uma vez que sempre foram estigmatizados pela principal emissora de TV do país.

O principal aspecto, a meu ver, que traduz o erro de análise por parte dos pastores, é de fundo teológico: quem precisa da TV Globo, e demais emissoras, não são os evangélicos, e muito menos a sua mensagem, para reverter qualquer prejuízo que novelas e outros produtos dessas emissoras historicamente tenham imposto à religião evangélica.

Quem precisa das televisões são os líderes religiosos, cujo principal objetivo é o crescimento de seus impérios ministeriais iniciados de forma tímida, tendo ganhado a dimensão atual pela inserção de programas nas grades televisivas a um custo milionário, patrocinado pelos fiéis que adquirem os produtos ofertados durantes esses programas com a promessa de que, assim fazendo, os “parceiros” ministeriais ou mantenedores serão abençoados por Deus. A teologia da prosperidade, que permeia todos esses programas, criou um sistema autótrofo, ou seja, capaz de se sustentar a partir de elementos produzidos em seu interior, independentemente de fatores externos. Como isso é possível?

Missas durante a madrugada

Da seguinte forma. Os líderes das igrejas que cresceram a partir da televisão utilizaram inicialmente o argumento evangelístico para convencer os fiéis a contribuírem para a manutenção dos programas. Os cultos transmitidos para milhões de lares fizeram com que o nome das igrejas, membros e líderes ganhassem indiscutível visibilidade e isso incentivou cada vez mais os fiéis à contribuição, por entenderem esse crescimento como fruto da pregação do evangelho pela TV. E assim gira a roda.

Essa lógica é perfeitamente aplicável à compra da Rede Record. Quem é responsável pelo crescimento de quem? A Record aumenta o poder da Universal ou a Universal financia a Rede Record? Uma mão lava a outra porque os fiéis abrem as duas?

Pois bem, a partir do crescimento numérico dos evangélicos, a Rede Globo passou a receber muitas críticas por sua discriminação à religião deles, pelas caricaturas e deformidades do caráter evangélico, presentes em personagens como o de Edson Celulari, citado na matéria da Folha de S.Paulo. Inicialmente, aos olhos da Globo, a Rede Record surgiu, depois de adquirida pela Universal, como um contraponto, um porta-voz da insatisfação evangélica à sua histórica perseguição às igrejas.

O tempo mostrou que essa análise global sobre a função da Record estava equivocada, pois a emissora do bispo Macedo, além de não representar de modo algum o pensamento do evangélico médio de outras denominações, incorporou os mesmos valores de mercado de qualquer emissora secular, não se importando em misturar na sua grade programas religiosos, com cara institucional, e outros produtos, sejam de ficção ou auditório, cujos princípios são igualmente condenáveis sob o crivo ético dos evangélicos. A diferença entre a Globo e a Record, além do desnível tecnológico, é que a emissora dos Marinho não pertence à Igreja Católica e por isso não recebe valores superfaturados para transmitir missas durante a madrugada.

Hora de rever resistências

Constatado o erro de análise, tanto a emissora carioca quanto os líderes evangélicos oponentes de Edir Macedo adotaram a postura adequada aos seus interesses materiais. Exclusivamente materiais, reforço. Ora, se a constante exposição dos evangélicos na TV nos últimos anos redundou em seu crescimento, e isso permitiu que um grande número de brasileiros se tornassem consumidores em potencial de tudo o que se relacione com os valores de sua religião, por que não tirar proveito disso? Matam-se duas ovelhas com uma mesma paulada: tira-se grande parte da audiência da emissora rival e vendem-se milhões em produtos de interesse desse público altamente fiel no seu consumo. Eureca!

Do lado dos pastores, identifica-se a emissora de Edir Macedo como oponente de suas estratégias de crescimento, uma vez que a emissora paulista está umbilicalmente comprometida com o projeto de poder da Igreja Universal e seu líder. Depois, busca-se a aliança com a principal emissora do país, cujas Promessas apontam para uma valorização maior dos conceitos defendidos pela cosmovisão evangélica. Alguém acredita em contos da carochinha? Alguns líderes parece que sim, e caíram no conto da Vênus Platinada. De uma só vez, a Globo passou a apoiar, com espaços cada vez maiores em seus programas jornalísticos, eventos como a marcha pra Jesus. Além de promover o festival Promessas. Qual a razão dessa mudança de estratégia? Mercado. O primeiro festival não foi produzido antes que a Som Livre, empresa da Rede Globo, criasse uma linha gospel e assinasse contrato com algumas das principais estrelas da música evangélica. Curiosamente, a maioria dos participantes do festival Promessas era (e é) contratada pela Som Livre. Vejam como o sistema se alimenta.

A conclusão óbvia na mente de qualquer leitor, evangélico ou não, é que a aproximação desses líderes com a Rede Globo é uma necessidade da agenda deles e da emissora. Os pastores citados não representam a totalidade dos cristãos evangélicos do Brasil, em sua rica heterogeneidade, como reconhece a Folha; representam a si próprios e seus projetos pessoais, e com certeza não têm apoio unânime nem mesmo entre os membros das igrejas que lideram.

A Rede Globo não tem qualquer interesse em reparar as perseguições que, sutil ou abertamente, efetivou contra os evangélicos quando ainda eram na casa dos milhares. Hoje milhões, eles não precisam que a emissora abra espaço para seus eventos principais, ou mesmo os promova, nem a cultos evangélicos como forma de compensá-los. Talvez ela, sim, pense em rever sua resistência aos programas religiosos e venda espaços para algumas igrejas. Porque afinal, hoje, os evangélicos já têm como compensá-la!

*** [Clóvis Luz é professor, Ananindeua, PA]

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